segunda-feira, 25 de abril de 2016

NADA NOS OBRIGA A ANDAR PARA A FRENTE


Nada nos obriga a andar para a frente. Sempre que passava por aqui, na baixa mar, sentia um fedor de fezes e de limos podres, nascidos das pedras. De forma um pouco maquinal, enviesava a marcha, passos para a direita, até pisar a relva, mas perdia uma decisiva faixa da água do rio, e em boa verdade ela fazia-me falta para ganhar o espaço inteiro  do meu olhar  e das minhas expectativas de percepção: é que nessa zona passavam os barcos de papel que gostava de construir enquanto estava sentado na esplanada, muito para trás, lendo a minha própria escrita em conjugados esforços. As pessoas estranhavam um pouco quer a fase da dobragem dos barcos em papel e alarmavam-se um pouco quando os pousava na água ou quando davam por mim, cem ou duzentos mais lá para a direita, à espera; ou agachado a fitar as pequenas "caravelas" desfilando em direcção (presumiam) à Torre de Belém.
Eu voltava ao meu caminho, já sem papéis nem restos deles nas algibeiras, Andava de novo em frente, ninguém me avisava do contrário, e sem querer desviava um pouco a direcção dos passos para a esquerda, pisando as pedras do longo cais. A maré continuava baixa  como é fácil depreender, mas a aragem das fezes desaparecera, havia sido substituída por um cheiro a certo tipo de algas, algo que lembrava o verdes escuro delas e a salinidade da zona, um odor másculo, salgado, vindo porventura do meio do rio, naquele estuário enorme, onde vogavam com inesperada regularidade grandes navios de carga, pretos em geral,com uma zona baixa que mais parecia ferrugem do que tinta. O fumo deles não agredia o nariz de quem espetava a cara para a sua escala mamutiana. Mas de lá, quando a sua popa se desfocava para a esquerda, para Leste,vinha de lá um vago perfume de alcatrão, aquele mesmo que me fazia parar no asfalto, na parte baixa da minha terra, a sul. Nunca percebi porquê, mas esse perfume casado com a salinidade fazia-me com que o aspirasse profundamene. Quando, enfim, voltava para trás, imaginava outro projecto. E tinha que procurar grandes fragmentos de cortiça, como fazia por vezes, com menos atrevimento, nas arrecadações das fábricas de transformação da cortiça, no sul.
Esta lembrança envolve a ilha do Loge e a ilha da rio Arade, Senhora do Rosário. Porque escrevi ontem sobre elas, o texto descia e o corpo da imagem subia. Atrás acontecera a mesma coisa. Era como andar em frente e a realidade fugir de mim, para trás. Amanhã a história terá sido afundada, já sem palavras nem fotografias, enquanto os meus pés terão de parar no limite dos ferros e da  costa em pedra, obrigados e reverterem a marcha.

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